27.3.14


Mítica, 1999. 31x20x14cm,
múltiplo de escultura em pasta acrílica e pedra. Edição de 100 exemplares.

«reproduz no brilho e na sedução da matéria, um mítico Ícaro no feminino,
 figura os sonhos e fantasmas da civilização.»   cps

23.12.10

medo de Q

«Tenho de dizer uma palavra acerca do medo. É o único verdadeiro adversário da vida. Só o medo pode derrotar a vida. É um adversário esperto e ardiloso, que eu bem o sei. Não tem decência, não respeita lei nem convenção, não mostra piedade. Vai ao nosso ponto mais fraco, que encontra com uma facilidade certeira. Começa sempre na nossa mente. Num momento estamos a sentir-nos calmos, seguros, felizes. E, depois, o medo, disfarçado com as vestes da dúvida afectada, introduz-se na nossa mente como um espião. A dúvida encontra a descrença e a descrença procura empurrá-la. Mas a descrença é um soldado de infantaria mal armado. A dúvida vence-a sem grande dificuldade. Tornamo-nos ansiosos. A razão vem travar a batalha por nós. Somos tranquilizados. A razão está bem equipada com a última tecnologia das armas. Mas, para nosso espanto, a despeito da táctica superior e de um inegável número de vitórias, a razão é vencida. Sentimo-nos enfraquecidos, vacilantes. A nossa ansiedade torna-se pavor.
Depois, o medo trabalha todo o nosso corpo, que já está ciente de que qualquer coisa terrivelmente errada se está a passar. Já os nossos pulmões saíram voando como pássaros e os intestinos deslizaram como uma cobra. Agora a nossa lingua pende morta como um gambá, enquanto o maxilar começa a galopar no mesmo sitio. Os ouvidos estão surdos. Os músculos começam a tremer, como se tivessem malária, e os joelhos abanam, como se estivessem a dançar. O coração retesa-se com demasiada força, enquanto o esfíncter se relaxa demasiado. E assim acontece ao resto do nosso corpo. Todas as partes do corpo, da maneira mais própria de cada uma delas, se desintegram. Só os olhos funcionam bem. Eles dão sempre a devida atenção ao medo.
Tomamos rapidamente decisões irreflectidas. Dispensamos os últimos aliados: a esperança e a confiança. Aí, derrotamo-nos a nós mesmos. O medo. que é apenas uma impressão, triunfou sobre nós.
O assunto é dificil de colocar em palavras. Porque o medo, o medo real, aquele que nos sacode até aos fundamentos, como o que sentimos quando levados a enfrentar o nosso fim mortal, aninha-se-nos na memória como uma gangrena: procura apodrecer tudo, mesmo as palavras com que se fala dele. Por isso temos de lutar duramente para exprimi-lo. Devemos lutar duramente para fazer brilhar a luz das palavras sobre ele. Porque se não o fizermos, se o nosso medo se torna uma escuridão inexprimível que evitamos, que talvez até consigamos esquecer, abrimo-nos a posteriores ataques de medo porque nunca lutámos verdadeiramente contra o opositor que nos derrotou.»

em ' A Vida de Pi ' de Yann Martel