6.11.05

Um artista versátil e eclético



«Decorreu de 1 a 31 de Outubro a primeira exposição de artes plásticas do novo Centro Cultural do Cartaxo, e a qual teve a honra de ser a primeira a inaugurar um espaço expositivo de qualidade, em que se respira modernidade e contemporaneidade.
(...) Luís Qual utiliza a cerâmica, o barro modelado como suporte para as suas criações artísticas. Mas as suas peças afastam-se de uma linha da cerâmica “tradicional” e são sobretudo peças escultóricas, em que a performance está bem vincada. (...) Individualmente cada peça conta uma história, a sua história; em conjunto, constroem uma antologia da condição humana, nas suas misérias e grandezas, herdeiros que somos de uma cultura essencialmente judaico-cristã.


Este artista, faz citações que nos remetem para a cultura de massas da nossa época. Nela existem ecos do cinema de Wim Wenders, da leitura de Milan Kundera, do romantismo e decadentismo de finais do século XIX, do surrealismo (que mais não é do que um segundo romantismo), da força expressiva de raiz ibérica de um Picasso, ou do surrealismo de Dali, do hedonismo e neo-platonismo da nossa época, da banda desenhada, da cultura de massas, do culto do corpo e da beleza da nossa época, da futilidade do nosso tempo, dos estudos antropológicos de Lévi-Strauss, ou do pensamento de Michel Foucault. E fá-lo com uma fina ironia e sarcasmo, nunca de uma maneira distanciada, mas sim com compromisso e apurada poética e sensibilidade. O leque de peças apresentadas é vasto: Gula, Dragonina Volátil, Mãe Preta; Mãe Branca; Procura, Pose, Passado, Projecto Oculto, Fénix, Indolência, Medo de Q....
Destaco, pelo seu significado, a peça escultórica o Estrangeiro, que faz uma crítica subliminar à nossa condição de portugueses: o deslumbramento pacóvio que temos perante tudo o que vem de fora, e por isso as luzes de Las Vegas, o néon que nos ofusca, perante a variedade e sociedades bastante mais cosmopolitas e misturadas do que a nossa. A obra de Luís Qual é rica de significados, versátil, polissémica, terna ou crua e rasgada.


Existe neste artista uma força subterrânea, vulcânica e telúrica; umas vezes é mais resguardado e intimista, outras mais exposto e despojado, sem mistério, na sua crueza directa e autêntica. Existe aqui uma demanda e ascese pessoal. As suas peças escultóricas estão no fio da navalha: rudes e directas, ou suaves, líricas e oníricas. Nelas o sonho e o pesadelo convivem lado a lado, ambições e vaidades torturam-se, dilaceram-se, em contrastes, não de preto e branco, não maniqueístas e moralizantes, mas cinzentos.
Todos temos um pouco de anjos e demónios e a natureza humana é, na sua essência, insondável e misteriosa. Toda a sua obra é autobiográfica, no sentido em que é feita por um indivíduo, a partir da sua experiência, sensibilidade, conhecimento e fruto de um contexto.
A leitura que se faz de uma obra, é sempre pessoal e subjectiva. Muitas vezes os artistas sorriem ao lerem as críticas às suas obras. Quando as estavam a realizar de uma maneira cerebral e programada, ou de uma maneira vulcânica e apaixonada não pensavam em nada disto nem em toda a “parafernália cultural” com que os críticos os atulham. São ossos do ofício, em que estamos condenados a viver, em alinhamento ou desencontro, nas muitas leituras possíveis de uma obra. A exposição de Luís Qual é já um marco de afirmação, e deu-o a conhecer a um público mais vasto e alargado. Poderá ser o pontapé de saída para uma carreira fulgurante. É um orgulho para o Cartaxo possuir um artista com a craveira de qualidade que este revela!»

Miguel Leal
(Historiador de Arte)